LIVRO + CD
Cada disco da meteora Amélia Muge é um acontecimento, e temos agora oportunidade de os revisitar quase todos.
Cada disco da meteora Amélia Muge é um acontecimento, e temos agora oportunidade de os revisitar quase todos.
Na esfera celeste a que pertence, Amélia Muge é um desses cometas raros a rasgar com brilho a orbe da reinvenção da música tradicional portuguesa. Desde a edição de Múgica, em 1991, cada álbum seu é fervorosamente aclamado pela imprensa especializada e por um pequeno culto de anónimos fervorosos amelianos, gente reconhecida por uma idolatria mais própria da estrela pop do que da “autora-compositora”. É essa a faceta de Amélia Muge que mais vem à tona neste Uma Autora, 202 Canções, uma revisitação da sua obra que colhe de todos os álbuns anteriores à excepção do mais recente Não Sou Daqui. Estão também incluídas canções compostas para outras vozes e ainda quatro originais.
Trata-se de um livro-disco, mais arrumado nas prateleiras das livrarias do que nos escaparates das lojas de discos. A natureza da obra torna quase natural que todas as letras-poemas sejam da própria Amélia Muge, mas as excepções que existem não são de nos apanhar de surpresa. Uma dessas excepções é o enormíssimo João Pedro Grabato Dias, o poeta mais presente em toda a obra da autora. Outra é Fernando Pessoa, igualmente fundamental no percurso da autora. “Nevoeiro”, o célebre poema de “Mensagem”, antes musicado em Todos os Dias, confirma-se nesta nova unidade estética como uma daquelas músicas capazes de se elevar numa carreira. Mas as letras de Amélia Muge são elas próprias tratados de poesia. “Coisa Assim”, antes interpretada por Mafalda Arnauth, tem uma letra surrealista de garbo humorístico, que já sobressaía no disco original: “Se eu morrer de amor por ti / Ai leva-me a enterrar / Dentro daquela careta / Que fizeste numa hora / Em que me estavas a olhar / E a rir te foste embora / E eu quase vi o meu fim / Se eu morrer ou coisa assim / Faz desse riso um cantar / Para te lembrares de mim”.
As novas roupagens, musicalmente trabalhadas por António José Martins e Filipe Raposo, não são isentas de objecções, mas esse é o risco de lidar com músicas carimbadas com o selo de definitivo. Os novos temas mostram uma Amélia Muge em grande forma, especialmente “Filme ainda sem genérico”, o que quase bastaria para justificar esta edição. Nos agradecimentos, Amélia Muge dirige-se aos jornalistas, que lhe explicam porque continua a “trabalhar nisto tudo“ e não a “fazer outra coisa qualquer, mais fácil, mais barata e a dar milhões”. Nós que podemos ouvir estas músicas, é que não nos devíamos sentir privilegiados por sermos tão poucos. Amélia Muge merecia uma audiência à altura da sua música inestimável.
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